Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Em nossa sociedade altamente modernista. Os lentos não têm vez. Tudo é rápido. Efêmero. As informações voam. Com toda essa pressa não ligamos ou muitas vezes não queremos enxergar o que está diante dos olhos: nós mesmos. Nosso corpo, essa máquina perfeita. Não percebemos a capacidade que temos. Nem chegamos a agradecer pelo dom que é nos dado. Nesse caso, o dom da visão. Você já parou para pensar como seria se de repente não conseguisse mais ver? Se diante de você viesse apenas um clarão branco, como um mar de leite? Você no carro, andando pela rua, amarrando o cadarço, estudando para a prova de amanhã. Entre uma piscada e outra, você se torna cego. Já pensou nisso? Como seria, não ver? Se tornaria vulnerável, não é? Fraco, submisso, medroso. Por quê? O que nos olhos há que sem eles não conseguimos viver? Em minha percepção os olhos são uma das armas mais poderosas existentes. Sabemos tudo que ocorre ao nosso redor, pois olhamos. Podemos reclamar se vem cabelo na comida, se o troco vem errado, conseguimos desviar de um buraco na calçada, sentimo-nos livres. A palavra é essa: liberdade. A visão nos dá liberdade infinita. Sem a visão nos sentimos presos, necessitamos da ajuda do outro. Somos como, bonecos. À idéia de cegar: como agiríamos, como sobreviveríamos?
No livro de Saramago: “Ensaio sobre a Cegueira” é relatado tudo isso e muito mais, de uma maneira minuciosa de como o ser humano se torna submisso ao fato de não ver. Como o ser humano sem os olhos não julga as pessoas pelo o que possuem. Por que julgaria, quem estará ali para olhar: qual tipo de roupa você usa? Qual tipo de jóia você obtém? Quem me diga quem? Somos julgados e julgamos pelos olhos. Isso é fato. Sem eles, onde o julgamento se encaixa? Sem os olhos o capitalismo fica de lado. Há uma diferença entre olhar e ver, por mais parecidas que sejam. O olhar no sentido de percepção visual, uma conseqüência física do sentido humano da visão. O ver como uma possibilidade de observação atenciosa, de exame daquilo que nos aparece à vista. Se podes ver, repara. O reparar não é nada mais do que se desprender da superficialidade da visão para aprofundar o interior do que é o homem e, finalmente, conhecê-lo.
No decorrer do livro percebe-se o quanto a barbárie e a civilidade tomam conta desse ser humano. Em que se desce aos mais baixos extremos da barbárie, mas sempre atentando para momentos de solidariedade e de compaixão, ou seja, para momentos em que o reparar se torna fundamental. O limite entre civilização e barbárie é rompido em uma sociedade altamente capitalista. No caso, do século XX. Luta-se pela sobrevivência, o instinto animal toma conta. Também há uma sociedade igualitária, sem distinção entre negros, brancos, ricos, pobres, homens, mulheres...
A cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como um sintoma da alienação do homem em relação a ele mesmo. Faz com que os homens percam a consciência de si, se deformem, se massifiquem, assemelhando-os a uma mercadoria. Há uma revisão de valores e uma tomada de consciência a respeito da situação do homem enquanto cidadão terráqueo. Isso porque, é possível haver humanização por meio do resgate da memória, da solidariedade e por meio também da perda das máscaras sociais, que alienam e aprisionam